Dave Douglas' Tea for Three (23.07.11)
Sem que tal intenção / coincidência / analogia tenha estado porventura subjacente à escolha das duas últimas formações que, em sábados consecutivos (23.07.11 e 30.07.11), este ano preencheram a metade final do cartaz comemorativo dos 20 anos de existência do ciclo Jazz no Parque -- o sexteto do trompetista Dave Douglas e o quinteto do contrabaixista Chris Lightcap --, o certo é que, na prática musical, sendo embora muito diverso o jazz que cada um deles tinha para nos propôr, ambos acabaram por ter entre si um ponto de contacto, ou seja, a circunstância de, na frente dos sopros, num grupo como noutro, se apresentarem lado a lado instrumentos pertencentes às mesmas famílias: trompetes e saxofones.
E se no primeiro caso (três trompetes) se pode dizer que terá sido esta a primeira vez que, numa pequena formação, vi e ouvi este invulgar trio instrumental (sem que qualquer fliscorne tivesse sido utilizado, por exemplo, em ordem a uma deliberada e diversificada estratégia tímbrica), a verdade é que, mais uma vez, dificilmente se poderia ter imaginado que a performance da música apresentada no segundo concerto estivesse a cargo de outros instrumentos que não, precisamente, dois sax-tenores, na exacta medida em que a eventual inclusão (mais corrente) de um trompete, um trombone ou até um saxofone de outra tessitura, não atribuiria a mesma qualidade e homogeneidade tímbrica à música que aquela instrumentação, em concreto, serviu.
Não pode deixar de saudar-se, desde já, a possibilidade de, pela primeira vez, nos ter sido proporcionada a audição (dificilmente repetível) de um grupo e de um projecto cuja constituição e conceito é assaz inabitual e que, para já, terá sido imaginada e convocada por Dave Douglas para uma única digressão europeia, da qual poderá resultar ou não (quem sabe?) a gravação de um álbum.
Este simples facto, para além da expectável originalidade de que o reputado trompetista norte-americano costuma rodear os seus múltiplos e diversificados projectos musicais, afigurar-se-ia a meu ver suficiente para mobilizar o interesse, quando não a mera curiosidade, da crítica especializada dos grandes jornais generalistas de referência. Não foi isso que, pelos vistos, se verificou, o que dá uma ideia de como está desinteressada e preguiçosa, quando não orientada de forma sectária, a opinião jazzística publicada nesses mesmos media.
Acontece, porém, que para além da estatura de indiscutível cultura teórica e exuberância técnica de que costuma dar provas o já citado Dave Douglas, estavam ainda em palco, por si convocados, nada menos que o israelita Avishai Cohen, ascendente revelação (já hoje certeza) da cena actual nova-iorquina, o transalpino Enrico Rava, mui consagrada personalidade do jazz internacional das últimas quatro décadas (!), e ainda os igualmente destacados sidemen do mesmo Douglas: Uri Caine (piano), Clarence Penn (bateria) e Linda Ho (contrabaixo), esta substituindo sem mácula o habitual James Genus.
Sublinhe-se, em primeiro lugar, neste descontraído contexto conceptual com bonomia intitulado Tea for Three, a curiosidade (e, com frequência, o regalo) que foi ver e ouvir divergirem por atalhos opostos ou convergirem em caminhos comuns aqueles três trompetistas, ao sabor dos eventos musicais cujo traçado estava previamente estabelecido na partitura ou consoante os comentários / desvios / ocorrências que a individualidade de cada um tornava oportunos ou inseria como sintoma de inconformismo e inquietação criativa.
Assim pôde descobrir-se ou confirmar-se como Dave Douglas é um dos mais personalizados, surpreendentes e abertos solistas, compositores e líderes do jazz contemporâneo; como Avishai Cohen sabe sublinhar e reforçar, sem demagogia, oportunismo, despropósito ou facilitismo, o seu apego não forçado ao rico acervo da linguagem tradicional do instrumento; e como Enrico Rava é sempre capaz de deixar a marca da sua sabedoria jazzística de anos, quer puxando-nos para as aventuras e os arrebatamentos do aleatório quer reconduzindo-nos à beleza clássica da melodia, ou não fosse ele um italiano de gema.
Estas três concepções tão díspares da expressividade de um mesmo instrumento -- no fundo, estes três ramos bem diversos de um mesmo tronco -- materializaram-se sobretudo, como seria natural, nas amplas improvisações que os músicos desenvolveram ao longo daquele fim de tarde, que o mesmo é dizer no lado mais pessoal do estilo de cada um. Mas puderam também ser estimuladas, reciprocamente, nos frequentes momentos de composição escrita ou de contraponto espontâneo que colocavam em compita os três trompetistas, ainda distintos entre si pelas técnicas de embocadura e de ataque, pelo vibrato ou pelo som liso e ainda (no caso de Cohen) pelo uso de surdinas.
Para a generalizada qualidade do concerto, contributo sem dúvida importante foi o da chamada secção rítmica, com um Uri Caine, extremamente swingante, a evocar de forma simbólica as influências de Tyner ou Kelly, Linda Ho, por vezes intervindo com uma "puxada" que fez esquecer James Genus, e ainda Clarence Penn, delicado, impetuoso, mas subtil q.b., embora algo prejudicado pela captação sonora (engenheiro de som do próprio grupo).
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Fotos: uma performance equilibrista de Rava, Caine, Cohen, Douglas e Ho em instalação da exposição Off The Wall (Museu de Serralves). Cortesia de © John Kelman (All About Jazz). Restantes: cortesia de Fundação de Serralves e © Silvana Torrinha.
Chris Lightcap's Bigmouth (30.07.11)
No fim de semana seguinte, a curiosidade (também, pelos vistos, pouco desperta na imprensa) teria de ir para a presença em palco de um quinteto que se destacara, com a publicação do álbum Deluxe (Clean Feed), entre os mais badalados das listas dos melhores discos de jazz de 2010, quer cá por casa quer lá fora. Refiro-me ao grupo Bigmouth, do contrabaixista norte-americano Chris Lightcap, cuja formação normalmente inclui talentosos músicos da cena nova-iorquina contemporânea, como os saxofonistas-tenor Tony Malaby e Andrew Bishop (este alternando com o ausente Chris Cheek), o teclista (piano acústico e Fender Rhodes) Gary Versace (que substituiu o mais habitual Craig Taborn) e o baterista Gerald Cleaver.
Para além da referência já adiantada acerca da peculiar conjugação dos sopros (dois sax-tenores) e da sua evidente adequação ao repertório específico do grupo, importa referir que foi no capítulo da composição (uma importante parcela das peças ouvidas no concerto) que residiu o que de mais e menos positivo pude encontrar na performance do quinteto, assim me tendo parecido relativamente irregular o resultado final do mesmo.
Embora em alguns momentos do concerto a matriz composicional de Lightcap tenha feito lembrar longinquamente a de um outro compositor e contrabaixista do jazz contemporâneo (Ben Allison), o facto é que o traçado das obras tocadas, deixando perceber uma clara originalidade do seu recorte melódico e dos seus fundamentos harmónicos, se manteve algo similar de peça para peça, como foi patente (pelo menos de um modo subjectivo) no mimetismo que me pareceu existir entre, por exemplo, Silvertone e Year of the Rooster (talvez demasiado próximas em termos de alinhamento), pese embora esta última se ter concluído por uma espécie de hino, de certo modo evocador de Albert Ayler.
Pelo contrário, um interessante contraste não deixou também de existir nas versões ouvidas de Platform, com uma misteriosa métrica irregular e um recorte klezmer nos seus saltos intervalares; Ting, um tema agitado e exposto em linhas paralelas evocando, além do mais, uma batida funky; ou o desenvolvimento sinuoso e juvenil de Celebratorial, um pouco à maneira do primitivo Ornette; e sem esquecer The Clutch, o melhor momento do concerto, com um tema anguloso, minimal e circular, muito bem instrumentado para a conjugação dos acordes do piano acústico com as vozes dos dois tenores e solos simultânos em progressivo crescendo, até atingir um paroxismo que sacudiu em termos emocionais a música ouvida.
No plano instrumental, se o cotejo entre o já consagrado Tony Malaby e o (para mim) menos familiar Andrew Bishop, se manteve vivo de princípio a fim pelas abertas possibilidades de diferenciação e aproximação que a estética das composições implicava -- com o mais recatado Bishop a soar porventura melhor integrado nessa estética do que o impulsivo e contagiante ardor improvisativo de Malaby -- já a extrema musicalidade de Gary Versace pôde revelar-se em praticamente todas as peças, com especial relevo para as já referidas Ting e The Clutch. Quanto ao próprio Chris Lightcap, só com o decorrer do concerto se foi progressivamente adaptando a um contrabaixo que não era o seu, acabando sem dúvida em plano superior e em profícuos diálogos com o delicado percussionismo de Gerald Cleaver, este chegado ao recinto duas horas antes do concerto começar (!), depois de uma directa e de algumas bolandas de avião para avião.
Já a captação de som resultou bem melhor e equilibrada do que no concerto do sábado anterior, assim ficando demonstrado que, às vezes, "santos da casa (Nuno Aragão) fazem milagres!"
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Fotos: cortesia de Fundação de Serralves e © Silvana Torrinha.
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